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sábado, 23 de outubro de 2010

AMAZONAS

FONTE: http://afinsophia.wordpress.com/2009/10/22/%e2%80%9camazonas-amazonas%e2%80%9d-de-glauber-rocha-no-kinemasofico/


“AMAZONAS, AMAZONAS”, DE GLAUBER ROCHA, NO KINEMASÓFICO


“O filme sobre o Amazonas é meu primeiro ensaio em cores. Cheguei no Amazonas com uma ideia preconcebida e descobri que não existia a Amazônia lendária e mágica, a Amazônia dos crocodilos, dos tigres, dos índios etc…” (Glauber Rocha)

AMAZONAS, AMAZONAS é um documentário dirigido por Glauber Rocha no final de 1965 e lançado no ano seguinte, encomendado pelo Governo do Amazonas, na gestão do historiador Arthur Cézar Ferreira Reis.

A AFIN, a partir do vetor Kinemasófico – que desenvolve todos os domingos à boca da noite um plano para crianças e adolescentes sobre técnicas e entendimentos cinematográficos, sempre seguidos da projeção de um cinema -, nesta semana que culmina com o chamado aniversário de Manaus (24 de outubro) projetou este documentário de Glauber para tecer uma discussão em torno das imagens atuais da cidade.

Já mundialmente conhecido por Deus e o Diabo na Terra do Sol, este foi na verdade o primeiro documentário de Glauber e também o seu primeiro trabalho em cores. Esteticamente inquieto e engajado politicamente, o cineasta do Cinema Novo tinha uma vida muito movimentada em viagens, publicações de livros, projetos cinematográficos e manifestos políticos-culturais.

Em novembro de 1965, durante a reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA), no Rio de Janeiro, Glauber, juntamente com Joaquim Pedro de Andrade, Mário Carneiro, Flávio Rangel, Antonio Callado, Carlos Heitor Cony, Jaime Rodrigues e Márcio Moreira Alves, é preso devido a um protesto contra a ditadura militar. Pela repercussão internacional negativa das prisões, que leva os cineastas franceses François Truffaut, Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Joris Ivens e Abel Gance a enviar-lhe um telegrama, o presidente Castelo Branco se vê obrigado a libertar os presos.
Saindo da prisão, Glauber vem direto para o Amazonas, onde passa o natal filmando Amazonas, Amazonas.

Segundo consta, Glauber considerava Amazonas, Amazonas um filme “completamente falho”. Ele aceitara o convite mais pensando em angariar fundos para seu projeto Terra em Transe (1967) e apenas faria um documentário clássico, seguindo a visão de viajantes e naturalistas, mas ao se deparar com a realidade de Manaus e outros municípios do estado, surge a duplicação do título. Inspirado, então, em Aruanda, de Linduarte Noronha, que ele considerava um marco do documentário nacional, Glauber capta o contraste entre a exuberância da selva, dos rios, das riquezas naturais e o marasmo econômico e o descaso social.

A primeira imagem é a imagem do título com a palavra Amazonas fragmentada. Em seguida, o documentário tem início com imagens aéreas grandiosas: a imensa floresta, o encontro das águas, enquanto vão sendo declamadas as palavras do conquistador Francisco de Orellana:

“O Negro encontra o Solimões. Duas águas desembocam numa só. Grandes águas; grande rio que descobri a 22 de junho de 1542 em missão do reino espanhol. Eu, Francisco de Orellana, enfrentei o desconhecido, dei combate a índios de longos cabelos que lembravam mulheres guerreiras de outras lendas. Vencidos os perigos, batizei a conquista: Amazonas! Amazonas!”

E a câmara vai aproximando, vê cachoeiras, o interior das matas, ouve o canto dos pássaros, até a música epopeica composta por Villa-Lobos dar lugar ao som de uma charamela; distante, homens em uma canoa; mais próximos, amolando os machados, e a narrativa muda.

“O Amazonas que conhecemos é outro. O Amazonas de hoje, maior estado do Brasil, onde o homem já fixou suas raízes e luta para desenvolver sua civilização, onde o homem, transformando árvores em casas, busca uma cultura a partir de suas visões especiais do meio.”

Como se, num estudo, Glauber fosse percebendo o material que está diante de si, até poder falar com essa gente. A entrevista com o trabalhador é uma demonstração da mobilidade e luta, tentativas do povo amazonense, autóctone e migrante, pela sobrevivência.

É verdade que muito pouco se vê em Amazonas, Amazonas da consistência cinematográfica do cineasta, mas ele é um documento fundamental do sufocante período entre o segundo surto da borracha durante a Segunda Guerra e a implantação da Zona Franca de Manaus em 1968, quando o Amazonas era uma região maldita com um passado faustoso. “Mas enquanto se pensa no futuro, a realidade do presente faz pensar no mais remoto passado.”

Por isso as imagens deixam os trabalhadores manuseando rusticamente o sernambi e saltam para o teto do Teatro Amazonas, templo maior, “onde os caudilhos fixaram suas leis homicidas”, e por isso, no dizer de Arthur Reis, fazendo do Amazonas “a região mais subdesenvolvida do país”.


A partir daí a câmera irá documentar as formas mas rudimentares de agricultura, criação, a juta, a madeira, o guaraná e o incipiente comércio da cidade, os casarões centrais do chamado Centro Histórico carcomidos, os velhos ônibus, as poucas ruas asfaltadas, os serviços públicos inexistentes, etc.

PARABÉNS, MANAUS!
O OLHAR DE GLAUBER ROCHA SOBRE TUA TRISTEZA PERMANECE NO SEGUNDO MILÊNIO…


Mas, apesar disso, acreditamos, não somente por fazer um documentário encomendado como propaganda, mas observando com proximidade os trabalhadores e suas produções, Glauber Rocha via de maneira positiva as imensas possibilidades abertas ao povo amazonense.

“Manaus à espera que o Amazonas seja incorporado ao Brasil, não como uma peça acessória, mas como agente de nosso processo econômico.”


Fotos: AFIN

Mas dois anos depois de ele lançar o documentário, foi instalado por decreto em Manaus mais um surto, este que predomina até hoje: a Zona Franca de Manaus. Incentivos fiscais e mão-de-obra barata como barganha para as multinacionais fazerem ponte-aérea das riquezas do estado.
Quase todos os interiores continuam economicamente semelhantes ao que o cineasta viu em suas andanças por Itacoatiara, Manacapuru, Parintins, etc. Pior, aquela “busca por uma cultura” que o cineasta pressentia acabou submetida pela indústria de turismo e marketing governamentais em manifestações artificiais mercadológicas, como o Boi-Bumbá, por exemplo.

Em Manaus, desde a ZFM, além do inchamento populacional, sem qualquer planejamento urbano, a população continua desassistida ou precariamente servida nos principais serviços públicos, como saneamento básico, saúde, educação, transporte, lazer, moradia, alimentação, etc.


Fotos: AFIN


Os prédios históricos, que aparecem abandonados, depauperados, foram restaurados no Centro Histórico, e lá governador e prefeito preparam suas peças de propaganda; mas toma um ônibus em direção à zona Leste, vai a uma escola na zona Norte, tenta vaga num hospital público… Vê as condições da morosa e desorganizada reforma do mercado Adolpho Lisboa. Mesmo em um momento propício da economia brasileira, com um governo federal preocupado com as modificações sociais necessárias, Manaus continua com seus caudilhos recentes. Aliás, caudilhos simplórios e impotentes, mas lucrando com um modelo econômico baseado na exploração capitalística e sempre a todo momento sob ameaça de que a aprovação de qualquer incentivo econômico a qualquer dos outros estados venha imediatamente promover a derrocada desse modelo artificial.


Fotos: AFIN


Mas é bom que sejam impotentes e artificiais, pois, assim como Glauber Rocha viu, mesmo sem nada que possa afirmar a imagética glauberiana, o imperceptível, a capacidade de um povo de não se deixar capturar, mesmo nas condições mais adversas, hoje também, em Manaus e provavelmente nos outros municípios do Amazonas, novas vozes, novas lutas, suas distintas e singulares trajetórias vão passando movimentos imperceptíveis e incapturáveis de resistência e criação, para além da miséria e da exploração. Fotos: AFIN

A Amazonas das invasões europeias e o Amazonas moderno. O Amazonas de Glauber e o Amazonas pós-moderno. O Amazonas propagandeado e o Amazonas real. Não são dois Amazonas, mas diversos Amazonas. O que se percebe e é o que verdadeiramente importa do documentário de Glauber, e para além dele, é que há sempre um outro Amazonas. Amazonas, Amazonas.

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