Display

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

A questão das drogas no processo educativo

Luama Socio
 
1 – Tentaremos abordar a questão das drogas na adolescência sob o ponto de vista educativo da maneira mais direta possível. O fato é que grande parte dos adolescentes usam drogas e que nós, educadores, gostaríamos que eles não usassem.
 
2 – Nós sabemos e sentimos veementemente que as drogas, além de não auxiliarem no processo da construção humana do adolescente, da sua formação integral como pessoa, atrapalham este processo.
 
3 – E também sofremos quando vemos os jovens atirados aos cantos, pelo chão, na rua, adormecidos em plena luz do sol, ou sob a luz dos postes à noite, ou amortecidos, semiconscientes, dentro das casas, dos quartos, ou dentro dos bares, das festas. Sofremos com a juventude assassinada ou presa. Sofremos com os crimes que ela comete, sofremos quando ela é vítima dos crimes.
 
4 – E nós nos perguntamos como é que podemos intervir em favor desses jovens, no sentido de fazê-los despertar para a vida ou para uma consciência maior. Queremos preveni-los sobre a morte que as drogas representam e são. Temos a sensação de que, entregando-se às drogas, eles estão se entregando à morte porque vemos seus corpos se degradando, testemunhamos muitas vezes a sua confusão emocional e ausência de lucidez intelectual. Ou ainda estamos diante do adolescente em conflito com a lei, cumprindo medida socioeducativa por ter cometido crimes no contexto da problemática das drogas.
 
5 – Trata-se de um fato que envolve então a relação entre o educador, que reflete sobre isto, e o educando. A este fato deveremos somar mais um: o fato de que o uso das drogas, com todas as suas questões, na nossa sociedade atual, é um fato cultural. A relação entre educador e educando tem então essa espécie de fundo cultural; está inserida nessa espécie de caldo cultural.
 
6 – As pessoas que fazem parte dessa cultura, sejam adolescentes ou adultos, usam drogas. Usam drogas como remédio para várias doenças ou dores, ou usam drogas para se divertir; usam drogas para se sentirem de uma forma diferente da habitual, usam porque faz parte de um ritual ou porque são viciadas.
 
7 – Especialistas em saúde chamam a atenção para “a mania por pílulas” que tem acometido grande parte da população ocidental a partir dos anos 2000. Desde o século XIX filósofos vêm apontando as insuficiências e tragédias da era do progresso científico e da crescente valorização da materialidade nos modos de vida, que faz com que as pessoas, indiscriminadamente, acreditem, por exemplo, em explicações químico-físicas para problemas nos mais variados setores da vida.
 
8 – Nunca se deu tanta importância aos objetos tecnológicos desenvolvidos a partir da química, física, biologia ou outras ciências naturais, com vistas ao bem-estar da vida em geral. E a partir do século XX não faltam análises sobre a ideologia da sociedade de consumo e competitiva transformando toda essa materialidade em mercadoria. Assim, qualquer coisa, seja droga, arte ou comida é, – antes de ser algo com características específicas em si, – acima de tudo objeto de consumo. E sob a sociedade de consumo subentende-se uma pretensa democracia de direitos de acesso a todos os tais objetos, apoiada nas amplas redes de propaganda que impulsionam os desejos dos consumidores em direção ao consumo desses objetos.
 
9 – Então, o educador deve ser consciente desta esfera cultural, e deve ser capaz de articulá-la às dinâmicas dos contextos específicos envolvendo a questão das drogas.
 
10 – O ponto fundamental do processo educativo é sempre o encontro, a relação entre educador e educando, com base no amor, na responsabilidade e no compartilhamento do momento em que estão juntos. No entanto pensamos também que é importante ter sempre em vista o horizonte cultural em que um conteúdo, um problema ou uma questão – circunstancialmente envolvidos no encontro – se apóia, porque é este horizonte cultural que nutre o processo educativo com imagens e realidades necessárias aos instrumentos educativos.
 
11 – Proporemos portanto, à guisa de reflexão, tentativas de compreender de que maneira a questão das drogas, entre outros elementos culturais, invade o campo do processo educativo exigindo resposta do educador, e aqui especificamente, do arte-educador.
 
12 – Saber: o que são as drogas, do ponto de vista químico, morfológico ou sociológico; quais efeitos específicos na saúde dos órgãos do corpo as drogas provocam; as conseqüências para o futuro, que elas provocam no nível social da vida do adolescente; quais motivações ambientais, contextuais, sociológicas, antropológicas e históricas levam o adolescente a usar drogas; em quais circunstâncias históricas de organização social o uso das drogas se manifesta; quais drogas são legais ou ilegais, etc.
 
13 – Ter informações sobre estas coisas e muitas outras relacionadas às drogas, formam o corpo, o escopo de nosso repertório necessário ao tratamento da questão.
 
14 – Mas, não obstante a importância de todas as informações trocadas, buscadas, por entre quem se preocupa com a questão das drogas, o fundamental, para o arte-educador, é observar em que sentido a utilização das drogas dialoga, especificamente, com pontos metodológicos, com a experiência que se têm no convívio com alunos – coletivamente e individualmente – com a vivência no contexto escolar incluindo todos os colegas. É a partir desta observação, vivida concretamente, que o educador deve abordar a questão.
 
15 – Queremos aqui apontar alguns dos sentidos deste diálogo, que se mostram recorrentes na nossa experiência.
 
16 – Do ponto de vista pedagógico, os adolescentes estão numa fase muito específica de formação: a fase em que deverão desenvolver com maior ênfase as faculdades lógico-simbólicas. Nesta fase os adolescentes estão tentando, naturalmente, usar mais o intelecto, a razão. Estão na fase do questionamento de valores porque vivem um processo intenso de necessidade de firmar uma identidade, um eu com personalidade própria e capaz de se auto-afirmar com independência na vida adulta que se aproxima vertiginosamente.
 
17 – A adolescência é uma fase de auto-descoberta. E isto implica todos os desdobramentos da descoberta ou da construção de uma dimensão interior em que fica o eu. Subitamente o jovem descobre que existe nele uma espécie de “lado de dentro”, contíguo ao “lado de fora” comum, que sempre vivenciou. O lado de fora ele reconhece como sendo as cobranças dos pais e as exigências do mundo, a relação tantas vezes conflitante com os colegas, a espinha no rosto, o cabelo ridículo porque é ruim, queria ter um cabelo igual ao do Neymar, a vontade de ter um tênis de marca e o último celular. O que é realmente este lado de fora? O que está do lado de dentro? Quem sou eu? De repente o adolescente começa a perceber que existe uma coisa dentro dele, diferente das outras coisas, que é ele mesmo. Mas como saber se esta coisa é verdadeira, como fazer com que seja verdadeira?
 
18 – Há alguém ou alguma coisa que possa auxiliar o adolescente nesta descoberta? A arte-educação poderá auxiliá-lo?
 
19 – Encontra-se em grande parte do senso comum a opinião de que as drogas são estimulantes da criatividade artística. A despeito do que haja de superficial e equívoco nessa associação, talvez esta seja uma pista da importância da arte na educação. As atividades artísticas talvez tenham um potencial privilegiado de dar espaço para a originalidade da manifestação do eu do indivíduo, espaço para a criatividade. Mas aqui não se trata da arte substituindo as drogas. Porém é aqui que muitas vezes lidamos com a idéia das drogas como substitutas ilegítimas da arte.
 
20 – E os arte-educadores têm a responsabilidade de discernir o que de ilusório existe nesta idéia de criatividade artística ou capacidade inventiva associadas ao uso das drogas. Não se tem notícia de que alguém tenha se tornado um artista genial porque ingeriu drogas. Mas temos algumas notícias de que pessoas que ingerem drogas eventualmente se sentem mais artistas ou mais geniais do que se sentiriam normalmente.
 
21 – Ao contrário das possibilidades vivenciadas ativamente e integralmente em direção a uma dimensão interior, propostas algumas vezes pelo exercício das artes, o efeito ilusório da abertura da percepção através das drogas implica uma passividade da vontade que pode acabar em doença e morte. A ilusão da ampliação da percepção se dá através do efeito psicológico provocado artificialmente por moléculas químicas em contato com o organismo. Através da alteração, supressão ou redução da percepção dos sentidos físicos, a realidade objetiva se enfraquece e a sensação de realidade subjetiva prevalece como espaço existencial. Isso não tem nada a ver com a conscientização ativa da dimensão interior e subjetiva, pressentida pelo adolescente, através de uma ampliação real da consciência, do crescimento do ser, que deveria ser promovida pela educação através do desenvolvimento da vontade própria do educando.
 
22 – O psicanalista italiano Luigi Zoja, que escreveu o livro “Nascer não basta”, defende a interessante tese de que as drogas são, para os adolescentes de hoje, um análogo substituto dos ritos de iniciação à vida adulta que sempre existiram, muito bem definidos, na maioria das sociedades humanas de todas as épocas, com exceção desta nossa época.
 
23 – Nessa tese está implícita a existência da dor e do sofrimento envolvidos num processo psicológico de renascimento baseado na descoberta da dimensão interior. Zoja salienta o fato também de que alguns adolescentes de hoje em dia teriam necessidades específicas de desenvolvimento interior, necessidades com as quais a nossa sociedade atual, tão voltada ao materialismo, não está preparada para lidar. Tais adolescentes, ou seja, muito poucos deles, teriam a possibilidade, por exemplo, se vivessem em alguma sociedade primitiva, de serem pajés, xamãs ou monges. Como não têm esta possibilidade, eles muitas vezes recorrem às drogas para que estas forcem a percepção, pressentida, de um nível de realidade subjetiva diferente do frustrante estado de coisas até então experimentado. Zoja aponta também para a qualidade de objeto de consumo em que a droga se transformou atualmente, caracterizando a motivação de uso para uma maioria geral.
 
24 – A idéia é que, na falta de ritos de passagens estabelecidos como regra social definida, os jovens acabam criando seus próprios ritos, dos quais, muitas vezes as drogas fazem parte. E esta idéia parte do princípio de que o momento da passagem, com ou sem rito, é essencialmente uma fase dolorosa, conflitante, problemática, porque trata-se, para o adolescente, de passar para uma outra fase da vida.
25 – A associação entre rito de passagem e desenvolvimento do ser humano é apontada pelo filósofo Joseph Campbell no livro “As Máscaras de Deus” nas seguintes palavras: “A principal função da tradição mitológica e da prática ritualística de nossa espécie tem sido conduzir a mente, os sentimentos e o poder de ação do indivíduo através dos limiares críticos das duas primeiras décadas para a idade adulta e da velhice para a morte. Isto com o propósito de fornecer os estímulos sinais adequados para liberar as energias vitais naquele que, não sendo mais o que era, tem de assumir uma nova tarefa – sua nova fase – de maneira apropriada ao bem-estar do grupo”.
 
26 – No entanto não temos como atestar, em caráter de fato, se realmente as drogas são utilizadas como elementos substitutos de rituais de passagem ou como elementos substitutos da arte.
 
27 – Mas também não temos como atestar, em caráter de fato, que os adolescentes usam as drogas simplesmente porque “elas dão prazer”.
 
28 – O argumento do prazer é o mais comum na atual abordagem do assunto porque está relacionado com a idéia do prazer de consumir. A nossa sociedade de consumo está organizada como a sociedade do prazer condicionado à capacidade de ter coisas, revestida dos valores de competição pelos bens materiais. As drogas são uma mercadoria, colocada no mercado através das inteligentes estratégias de propaganda e de desnível entre demanda e oferta do produto. Trata-se de uma mercadoria como qualquer outra, que é consumida para dar prazer. É consumida como tudo o que é propagandeado, para satisfazer o desejo despertado pelas promessas implícitas na própria propaganda do produto.
 
29 – O fundo motivacional do indivíduo para a busca do prazer, neste contexto, poderia ser explicado com detalhes pela psicologia freudiana, que caracteriza o desenvolvimento do ser humano por entre marcas de satisfação e frustração de desejos na trajetória da vida pessoal.
 
30 – Este ponto de vista é insuficiente do ponto de vista educativo com relação aos adolescentes porque observa-se que raramente a questão do prazer está visivelmente envolvida na motivação inicial para o uso das drogas. É mais fácil encontrar o elemento do prazer representado no processo do vício em depoimentos de pessoas dependentes de drogas. Mas em relação à expressão prática do uso, na sua forma generalizada, quase sempre os relatos mostram uma primeira experiência de caráter extremamente desagradável, desprazerosa inclusive, e conseqüências mais desagradáveis ainda, quando o uso das drogas se torna freqüente.
 
31 – Temos aí então uma mistura de dor e prazer que delineará um tema à parte dentro do assunto. Segundo Kant, o jogo entre prazer e dor é o fundamento psicológico da percepção da própria vida. Em sua “Antropologia de um ponto de vista pragmático” o filósofo diz: “Contentamento é o sentimento de promoção da vida; dor, o de um impedimento dela. Todavia, a vida (do animal) é, como também já observam os médicos, um jogo contínuo do antagonismo entre ambos. Assim antes de todo contentamento tem de preceder a dor; a dor é sempre o primeiro. Pois que outra coisa se seguiria de uma contínua promoção da força vital, que não se deixa elevar acima de um certo grau, senão uma rápida morte de júbilo”?
 
32 – O viciado em prazer seria, para Kant, o indivíduo com uma necessidade patológica de sentir a vida intensamente e continuamente através desse jogo de dor e prazer, que corresponde a um trânsito vertiginoso entre morte e vida para poder sentir sempre com mais intensidade, a vida.
 
33 – O poeta francês Baudelaire, em seu livro “Paraísos artificiais”, corrobora mais ou menos essa visão de Kant, tentando mostrar que o uso das drogas é motivado pelo desejo de sentir a vida em toda a sua glória, plenitude e felicidade. O poeta porém dispensa inicialmente a questão da dor como elemento complementar do prazer. Segundo ele, essa sensação de plenitude pode ocorrer naturalmente na vida de todos nós, mas por algum motivo ela seria rara, daí recorrer-se às drogas para forjá-la artificialmente. O usuário descobrirá porém, quão ilusórios são os “paraísos artificiais” das drogas e arcará com nefastas conqüências.
 
34 – Como educadores estamos todos sempre do lado da vida e jamais do lado da morte. Sentimos que a valorização da vida deve ser algo total, e não apenas daquilo que se antagoniza com a morte num processo patológico. E embora os adolescentes de hoje não passem por ritos estritamente convencionados de iniciação à vida adulta, vemo-nos ao lado deles durante momentos cruciais do desenvolvimento que implica a passagem de uma vida de criança para uma vida de adulto.
 
35 – Conscientizemo-nos da necessidade de auxiliá-los na morte simbólica do menino que eram, para que renasçam homens. Essa “morte” não tem a ver com doença. Tem a ver com a experiência da vida total, que engloba muitas mortes simbólicas ao longo de seu curso. Queremos contribuir para a vida dos adolescentes no sentido de auxiliá-los a desenvolverem-se como pessoas integrais. No nosso método pedagógico este objetivo envolve o entrelaçamento das dimensões físico-corporal, afetivo-imaginativa e lógico-simbólica nas atividades que propomos aos nossos alunos durante as aulas.
 
36 – Ao invés de desejarmos que nossos alunos sejam apenas fortes, vencedores e espertos, preferimos contribuir para que sejam saudáveis, felizes e sinceros consigo próprios e com o mundo ao redor. E estes são valores de uma concepção educativa para o desenvolvimento do ser integral e não apenas do ser “consumidor”.

Fonte
http://www.gada.org.br/site-novo/index.php/a-questao-das-drogas-no-processo-educativo/

Nenhum comentário: