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terça-feira, 28 de janeiro de 2014

GENTE VALE QUANTO PENSA, LUTA E AMA

Fernando Altemeyer Júnior*

Quanto vale um ser humano? E com qual medida medir? Nossos pais sempre nos disseram que as coisas valem pelo peso, mas, e quanto às pessoas? Quanto vale um menino de rua? Quanto vale um americano e quanto um iraquiano? Existem pesos diferentes? Qual a boa balança? De que somos feitos? Existe um barro comum que nos forjou? Somos filhos de um mesmo útero? Recolocando as perguntas em termos religiosos: quanto será que vale a nossa vida?

A resposta parece simples e direta: o valor de cada pessoa é infinito e incomensurável. Mas a realidade cotidiana nos faz ver que muitas vidas são barganhadas por bem menos que as 30 moedas com as quais Judas entregou Jesus. Existem muitas pessoas que se submetem a vexames e indignidades asquerosas por 500 mil reais em programas televisivos como Big brother Brasil.

Crianças no Brasil e no mundo morrem por falta d’água tratada e por uns poucos gramas de soro caseiro que lhes são sonegados. Adolescentes em nossas capitais morrem por ínfimos pacotes de cocaína e pelas pedras de crack. Jovens nas periferias e nas gangues de classe média matam por sadismo, por medo e para atender às ordens de traficantes. E, para completar esse quadro de horrores de nosso Guernica tropical, no Nordeste brasileiro, crianças de 9 anos são vendidas e prostituídas, por alguns reais, para turistas europeus em viagens de turismo sexual. Deputados vendem alvarás para soltura de traficantes. Juízes roubam dinheiro para a compra de mansões na Flórida (EUA). Políticos man­têm contas secretas em paraísos fiscais com dinheiro sonegado do povo, que é mantido na ignorância também por falta desta verba que lhe foi roubada.

Se valemos tanto, por que esta dignidade nos é roubada de forma tão acintosa?  Talvez porque todos tenhamos aceitado tal realidade. Ser conivente nem sempre é salutar. Muito da perda da dignidade se dá nas pequeninas perdas em nosso cotidiano. Concedemos licenças para poderes ilegítimos e nos desvalorizamos. De grão em grão vamos ficando sem o essencial. Vendemos nossa alma e depois temos o dinheiro, porém não temos mais nosso eu fundamental. Somos clones de alguém em quem não mais nos reconhecemos. Herbert de Sousa, o Betinho, sempre nos lembrava que a cidadania se constrói já na mesa do café da manhã e no primeiro bom dia. Se vou me omitindo cada vez que vejo uma injustiça, torno-me conivente. Depois de um tempo ficará muito difícil protestar, pois já estarei envolvido na rede ardilosa da ideologia.
É preciso que mudemos e assumamos ainda mais em nossa vida aquilo que proclamamos como valor aos outros. Coerência é uma exigência de todos que lutam pela dignidade humana. Assim dizia Santo Agostinho: “Por causa da miséria humana, até a vida dos bons está coberta, se não de barro, ao menos de poeira. E, se não se aplicar diariamente ao exercício da penitência, podem acabar em estado lamentável” (Sermão 131, 3.5). Sair de determinadas situações sem barganhar seus valores poderá custar caro naquele momento, mas garantirá equilíbrio psíquico e coerência de vida no futuro. Não é tudo que me pedem e mandam realizar que devo cumprir. Para isso preciso muito discernimento, maturidade e diálogo. Não é dizer um não contestatório, mas argumentar e propor um sim convicto, claro e destemido. Sem nenhuma arrogância. 

Outra razão para tanto desprezo pelos pobres, negros e mulheres reside em nossa formação histórica. Somos filhos renegados da Colônia, marcados com o ferro em brasa da escravidão e convivendo em uma sociedade de classe extremamente violenta. Sem alterar as estruturas econômicas e políticas, pouco poderá cambiar. As mudanças estruturais em nosso Brasil e no continente latino americano e caribenho são tarefas para ontem. Não basta mudar os corações, é preciso mudar o modo de viver. E não basta mudar a estrutura social se não mudarmos as pessoas que nela vivem. Precisamos mudar e mudar-nos. Aqui entram todos: escolas, times de futebol, religiões, pipoqueiros, marreteiros, empresários, políticos, desempregados e estudantes. Ninguém tem direito a se eximir e desfalcar este time cidadão.

Vale lembrar ainda que, sem uma efetiva participação na gestão democrática das informações e das mídias, seremos sempre títeres de grandes conglomerados, sempre mais dispostos a apoiar guer­ras e linchamentos do que em empenhar-nos na árdua e penosa luta pela paz. Dignidade humana e liberdade se constróem com firmeza permanente e não com manipulação e imperialismo culturais.

Nossa vocação comunitária
Um velho ditado diz que nada do que é humano pode ser alheio a um outro homem ou mulher. Esta é a vocação comunitária de cada ser humano. Quase podemos dizer que não existe um ser humano genérico, sem que haja antes a comunhão das pessoas concretas. Existem os humanos, e estes com seus sonhos e personalidades constituem a bela trama que é a vida humana. Os religiosos afirmam encontrar a imagem de Deus em cada ser humano. E é importante que esta imagem seja polifacetada. Deus nos fez no plural e não no singular. Cada um de nós como seres únicos, complexos e singulares, radicalmente iguais e simultaneamente diferentes. Sem senhores e tampouco escravos, fraternos e diversos. Vivendo conflitos de poder e de solidariedade cotidianos. Somos idênticos em termos genéticos, estruturais, mas totalmente diferentes nas digitais, em nossas memórias, em tantas dores próprias e sonhos inefáveis.

Em muitas religiões, particularmente nas monoteístas, a dignidade humana ocupa lugar central. Mas não uma dignidade abstrata, genérica e fluída. Dignidade de Marias, Pedros e Letícias. Gente com nome e sobrenome, com rostos distintos, com seus limites e suas transcendências. Temos isto em todas as páginas dos livros sagrados das religiões: na Torá judaica, nos Evangelhos cristãos, no Corão islâmico, nos sutras budistas e até mesmo no ancestral código do rei Hamurabi.

Mas, além dessa vocação arquetípica de cada pessoa humana, dos escritos sagrados que defendem a dignidade de todos, temos ainda gente destemida a nos convocar para viver esse conceito: pensemos em São Sérgio, patrono da Rússia; na não-violência do hindu Mahatma Gandhi; na luta pelos direitos civis do pastor batista norte-americano Martin Luther King; na luta contra o nazismo do pastor luterano Dietrich Bonhoeffer; nas missões populares, do missionário nordestino, padre Ibiapina; em nosso líder seringueiro e em seus embates no Acre, Chico Mendes; na luta pela terra, do padre católico Josimo Moraes Tavares; na luta por liberdade, do jornalista judeu Wlado Herzog; na luta sindical, da evangélica Margarida Alves; na luta pela paz, do líder Bahaí, Mirza Husain’ali Nuri Bahá’ullán; e em outros heróis anônimos de tantas confissões religiosas.
No Brasil atual, temos profetas e profetisas da cidadania, como Dalmo de Abreu Dallari, Mário Simas, Hélio Pereira Bicudo, Marina Silva, dom Paulo Evaristo Arns, além de centenas de ONGs (Organizações Não-Governamentais) e Centros de Defesa dos Direitos Humanos, que coletivamente tornam essa luta por cidadania uma luz em horas difíceis. Enfrentam a banalidade do mal com seu testemunho e amor pelas pessoas, sem distinção de credo, classe social, ideologia ou identidade étnica.

O Deus dos cristãos, por exemplo, afirma que quem toca e machuca uma criança, um pequenino, está tocando e machucando o próprio Deus Criador. É pecado imprescritível que pede para ser abolido com urgência. O Deus do povo de Israel proclama solenemente que qualquer criança de qual­quer canto pobre do planeta, é imagem única desse mesmo Deus, e que esta criança, timorense, brasileira, afegã ou iraquiana, poderá salvar a imagem de Deus. O ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, por isso, se maltratamos um pobre, praticamos uma idolatria religiosa. Preservar a imagem bela e digna de um ser humano é caminho necessário para preservarmos a divina imagem de Deus. Quanto mais belo for o homem e a mulher, mais lindo será Deus. Quanto mais bela a imagem de nosso Deus, mais emancipados e livres serão os seus adeptos e mais comprometida com a vida e a dignidade será a religião por estes cultuada.

Uma religião que for contra o ser humano deve ser abolida por automaticamente ser contra Deus. E tudo o que for em favor do divino deve concorrer para a plenitude do humano. Afinal, valemos o quanto pensamos, lutamos e somos capazes de amar.


*Licenciado em Filosofia, mestre em Teologia e Ciências da Religião pela Universidade Católica de Louvain,(Bélgica), e doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo. Professor do Departa­mento de Teologia da PUC-SP e apresentador, na Rede Vida, do programa Terceiro milênio.    


Artigo publicado na Diálogo - Revista de Ensino Religioso - nº 30 - Maio de 2003
Fonte - http://www.paulinas.org.br/dialogo/?system=paginas&action=read&id=5255


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