Fernando Altemeyer Júnior*

A resposta parece simples e direta: o valor de cada pessoa é infinito e incomensurável. Mas a realidade cotidiana nos faz ver que muitas vidas são barganhadas por bem menos que as 30 moedas com as quais Judas entregou Jesus. Existem muitas pessoas que se submetem a vexames e indignidades asquerosas por 500 mil reais em programas televisivos como Big brother Brasil.
Crianças no Brasil e no mundo morrem por falta d’água tratada e por uns poucos gramas de soro caseiro que lhes são sonegados. Adolescentes em nossas capitais morrem por ínfimos pacotes de cocaína e pelas pedras de crack. Jovens nas periferias e nas gangues de classe média matam por sadismo, por medo e para atender às ordens de traficantes. E, para completar esse quadro de horrores de nosso Guernica tropical, no Nordeste brasileiro, crianças de 9 anos são vendidas e prostituídas, por alguns reais, para turistas europeus em viagens de turismo sexual. Deputados vendem alvarás para soltura de traficantes. Juízes roubam dinheiro para a compra de mansões na Flórida (EUA). Políticos mantêm contas secretas em paraísos fiscais com dinheiro sonegado do povo, que é mantido na ignorância também por falta desta verba que lhe foi roubada.
Se valemos tanto, por que esta dignidade nos é roubada de forma tão acintosa? Talvez porque todos tenhamos aceitado tal realidade. Ser conivente nem sempre é salutar. Muito da perda da dignidade se dá nas pequeninas perdas em nosso cotidiano. Concedemos licenças para poderes ilegítimos e nos desvalorizamos. De grão em grão vamos ficando sem o essencial. Vendemos nossa alma e depois temos o dinheiro, porém não temos mais nosso eu fundamental. Somos clones de alguém em quem não mais nos reconhecemos. Herbert de Sousa, o Betinho, sempre nos lembrava que a cidadania se constrói já na mesa do café da manhã e no primeiro bom dia. Se vou me omitindo cada vez que vejo uma injustiça, torno-me conivente. Depois de um tempo ficará muito difícil protestar, pois já estarei envolvido na rede ardilosa da ideologia.

Outra razão para tanto desprezo pelos pobres, negros e mulheres reside em nossa formação histórica. Somos filhos renegados da Colônia, marcados com o ferro em brasa da escravidão e convivendo em uma sociedade de classe extremamente violenta. Sem alterar as estruturas econômicas e políticas, pouco poderá cambiar. As mudanças estruturais em nosso Brasil e no continente latino americano e caribenho são tarefas para ontem. Não basta mudar os corações, é preciso mudar o modo de viver. E não basta mudar a estrutura social se não mudarmos as pessoas que nela vivem. Precisamos mudar e mudar-nos. Aqui entram todos: escolas, times de futebol, religiões, pipoqueiros, marreteiros, empresários, políticos, desempregados e estudantes. Ninguém tem direito a se eximir e desfalcar este time cidadão.
Vale lembrar ainda que, sem uma efetiva participação na gestão democrática das informações e das mídias, seremos sempre títeres de grandes conglomerados, sempre mais dispostos a apoiar guerras e linchamentos do que em empenhar-nos na árdua e penosa luta pela paz. Dignidade humana e liberdade se constróem com firmeza permanente e não com manipulação e imperialismo culturais.
Nossa vocação comunitária

Em muitas religiões, particularmente nas monoteístas, a dignidade humana ocupa lugar central. Mas não uma dignidade abstrata, genérica e fluída. Dignidade de Marias, Pedros e Letícias. Gente com nome e sobrenome, com rostos distintos, com seus limites e suas transcendências. Temos isto em todas as páginas dos livros sagrados das religiões: na Torá judaica, nos Evangelhos cristãos, no Corão islâmico, nos sutras budistas e até mesmo no ancestral código do rei Hamurabi.
Mas, além dessa vocação arquetípica de cada pessoa humana, dos escritos sagrados que defendem a dignidade de todos, temos ainda gente destemida a nos convocar para viver esse conceito: pensemos em São Sérgio, patrono da Rússia; na não-violência do hindu Mahatma Gandhi; na luta pelos direitos civis do pastor batista norte-americano Martin Luther King; na luta contra o nazismo do pastor luterano Dietrich Bonhoeffer; nas missões populares, do missionário nordestino, padre Ibiapina; em nosso líder seringueiro e em seus embates no Acre, Chico Mendes; na luta pela terra, do padre católico Josimo Moraes Tavares; na luta por liberdade, do jornalista judeu Wlado Herzog; na luta sindical, da evangélica Margarida Alves; na luta pela paz, do líder Bahaí, Mirza Husain’ali Nuri Bahá’ullán; e em outros heróis anônimos de tantas confissões religiosas.

O Deus dos cristãos, por exemplo, afirma que quem toca e machuca uma criança, um pequenino, está tocando e machucando o próprio Deus Criador. É pecado imprescritível que pede para ser abolido com urgência. O Deus do povo de Israel proclama solenemente que qualquer criança de qualquer canto pobre do planeta, é imagem única desse mesmo Deus, e que esta criança, timorense, brasileira, afegã ou iraquiana, poderá salvar a imagem de Deus. O ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, por isso, se maltratamos um pobre, praticamos uma idolatria religiosa. Preservar a imagem bela e digna de um ser humano é caminho necessário para preservarmos a divina imagem de Deus. Quanto mais belo for o homem e a mulher, mais lindo será Deus. Quanto mais bela a imagem de nosso Deus, mais emancipados e livres serão os seus adeptos e mais comprometida com a vida e a dignidade será a religião por estes cultuada.
Uma religião que for contra o ser humano deve ser abolida por automaticamente ser contra Deus. E tudo o que for em favor do divino deve concorrer para a plenitude do humano. Afinal, valemos o quanto pensamos, lutamos e somos capazes de amar.
*Licenciado em Filosofia, mestre em Teologia e Ciências da Religião pela Universidade Católica de Louvain,(Bélgica), e doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo. Professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e apresentador, na Rede Vida, do programa Terceiro milênio.
Artigo publicado na Diálogo - Revista de Ensino Religioso - nº 30 - Maio de 2003
Fonte - http://www.paulinas.org.br/dialogo/?system=paginas&action=read&id=5255
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